Para trabalhar: “Não tenho maior alegria do que esta, a de ouvir que meus filhos andam na verdade” (3 Jo 4)
Objetivo: Tornar a igreja esclarecida e levá-la a refletir sobre sua responsabilidade no tempo atual.
Introdução: O que é modernidade?
A história é dividida, pelo historiador tradicional, e assim aprendemos na escola, em períodos que também podem ser fases do desenvolvimento mental e técnico do homem cujos sinais podem ser notados nas edificações - científicas, políticas, econômicas, religiosas, culturais -, que o passado distante e mesmo recente nos deixou. Embora não haja unanimidade entre historiadores que divergem quanto à classificação de período e fase desse desenvolvimento, via de regra podemos fazer uma leitura, ao menos superficial desses períodos, classificando-os de forma didática para um melhor entendimento.
A modernidade é comumente aceita como o período de saída da Idade Média quando o homem começa a se libertar das formas rudimentares em que concebia seu modelo de mundo. Tradicionalmente a Idade Média Ocidental se situa entre o período que vai da queda do Império Romano do Ocidente (com capital em Roma), em 476, até a queda do Império Romano do Oriente ou Império Bizantino (com capital em Constantinopla), em 1453.
A Renascença ou Renascimento como é mais comum ser chamado, é o momento histórico em que se organiza e começa a se formar a nova identidade do homem europeu. O termo Renascimento se deve as descobertas, na filosofia, dos escritos de Aristóteles e nas artes, de um retorno à estética greco-romana, principalmente a estatuária. Tomás de Aquino o grande teólogo da igreja na época, que é bom lembrar, viveu entre 1225-1274, quer dizer, bem antes da Reforma, foi um dos que elaboraram seu sistema teológico baseado nos escritos de Aristóteles. Os irmãos Van Eyck, Grunhewald, Bruguel, Bosch, Da Vinci, Botticelli, Rafael, Michelangelo, Dürer, El Greco, Holbein, Granach, Bramante, Cervantes, Tomas Morus, Shakespeare, Camões, Gil Vicente e outros, são nomes que se destacaram nas artes, letras e arquitetura do Renascimento.
Com a modernidade houve tanto benefícios quanto malefícios cabe a nós lidar e identificar onde se situam e o que representam:
A Reforma Protestante, que só pode acontecer devido ao momento propício para que houvesse o protesto. Todas as mudanças que estavam ocorrendo na mentalidade do homem europeu serviram de incentivo para que se pensasse fora daquela concepção religiosa fechada.
O entendimento dos mecanismos que regem o mundo natural. Com isso o homem pode também se libertar de antigos mitos que o assombravam, entendendo que havia eventos na natureza que não estavam ligados a ira divina, e sim, que faziam parte de um processo natural - natural no sentido de que havia uma ordem estabelecida regida por leis fixas.
O avanço no campo científico, principalmente na medicina.
Saída do antigo modo de vida feudal. Dominados exclusivamente pelos senhores donos dos feudos e da vida dos camponeses.
A noção de que se habitava num universo aberto, portanto, onde cada um poderia trabalhar seu próprio futuro tendo possibilidades de realização, não estando amarrado a um destino fixado em um universo fechado e limitado. Em outras palavras, o homem começava a ter a noção de que seu futuro não está determinado nem prefixado.
Malefícios:
A perda de referência moral. Quando se viu totalmente livre, o homem não soube o que fazer com sua liberdade. Enquanto estava preso a uma idéia religiosa de mundo, agia pensando na recompensa. No entanto ao se ver livre resolveu questionar também os padrões morais, já que todos estavam, na idéia religiosa de mundo, vinculados a Deus.
O modo de produção capitalista produziu uma sociedade cada vez mais estratificada onde o pobre ficava cada vez mais pobre e o rico cada vez mais rico. No sistema capitalista o trabalhador perde sua identidade, se torna um subproduto do produto, movimento observado por Marx.
Decadência ética. A corrida pela obtenção e manutenção do capital desembocou num estado de egoísmo e individualismo, em que cada um se preocupa com o seu, e quem puder tirar mais lucro e se afirma no mercado. Lucro obtido exclusivamente às custas dos pobres assalariados.
Modernidade e um novo modo de se relacionar com o tempo
Todo um novo modo de vida se instala na Europa, e um ponto que é de suma importância é o tratamento que o tempo passa a ter no começo da era moderna. Quando alcança um estágio técnico novo o homem tem a noção de que conquistou o tempo. Até então o ritmo da vida era marcado pelo nascer e por do sol. Os relógios começam a interpretar a marcha do tempo, em plena expansão urbana as cidades começam a levar uma vida regulada. Como conseqüência implantaram-se hábitos de ordem e organização do tempo. Quando passa a ser contado o tempo ganha um valor, parece que o ditado “tempo é dinheiro” é mais antigo do que imaginamos. Na Itália a partir do século XIV o dia foi dividido em 24 horas e as horas divididas em intervalos regulares de 60 minutos. Em 1335 o primeiro relógio que dava horas iguais está instalado na igreja de São Gotardo, em Milão. A partir de então relógios públicos se espalham pela Europa, e regulam o ritmo de vida no mundo capitalista, com isso a eternidade deixa de ser o ponto de convergência dos homens, que agora estão debaixo de uma outra regularidade, a do mercado.
O apóstolo Paulo no ensina que a liberdade traz consigo responsabilidade, e que em todo tempo mudanças requerem de nós uma postura crítica e tomada de decisões fundamentadas numa consciência limpa diante de Deus (1 Co 6.12)
Agora pensemos um pouco mais sobre algumas questões mais específicas, sendo que uma análise muito abrangente ocuparia muito do nosso tempo. Mudanças em todas as dimensões da vida ocorreram a partir das novas possibilidades que o modernidade oferecia, eis algumas:
1. Mudanças no campo da religião
Mesmo que muito do que se diga sobre a Idade Média quanto ao obscurantismo mental em que viviam seja uma crítica muito parcial dos iluministas, é fato que no campo religioso havia muita superstição e medo no imaginário do homem nesse período. Fortemente dominado pelo clero que se apresentava como legítimo representante de Deus na terra, a igreja (antes do protesto) mantinha o povo debaixo de um servilismo, fazendo do medo seu principal expediente.
De maioria analfabeta e sem acesso as Escrituras a plebe tinha os papas como mediadores entre eles e Deus, e assim, ditavam o ritmo da vida de acordo com interesses econômicos e políticos de manutenção de poder bem definidos. Assim, esses que não tinham acesso as Escrituras viviam a mercê de uma religião opressora, num universo fechado em que, o que ocorria, desde uma chuva que devastava plantações a doenças que varriam um continente, tudo estava debaixo da vontade divina, sendo estas algumas das muitas formas de manifestar seu desagrado com o homem. O clero se utilizava muito desse recurso para manter as pessoas debaixo de um rígido controle mental. Sobre isso a Escritura diz: Jo 8.32,36; Gl 5.13.
Os avanços da ciência possibilitaram o entendimento das leis que regiam o universo. Foi possível constatar que existiam leis fixas, e que a natureza obedecia a essas leis tendo seus ciclos naturais. Assim, onde a religião via uma articulação divina, a ciência desvendava um processo natural. O que em longo prazo ocasionou por parte de muitos em descrédito à religião.
O problema central dessa mudança religiosa que na Europa gerou o deísmo, que também no período do Iluminismo deu origem as primeiras manifestações públicas de ateísmo, se deve ao fato de que muitos não encontraram mais um lugar para Deus no mundo. Uma vez que, na Idade Média pensavam viver debaixo de uma supervisão divina tipo “pente-fino”, quando a ciência disse que não era assim, o Deus em que criam perdeu espaço e não se achava mais lugar para ele no mundo.
O que se percebe é que a relação do fiel com Deus na Idade Média era pragmática (de resultados), e Deus era à semelhança de um senhor feudal dono dos destinos dos súditos. Assim, o fiel tinha em Deus um “tapa-buracos” da existência, um “Deus-das-brechas”, como vai chamar Bonhoeffer teólogo alemão que vai identificar o mesmo comportamento em muitos cristãos na década de trinta e quarenta no século XX.
O povo de Israel viveu quarenta anos no deserto clamando por um Deus “tapa-buracos”, e quando algo lhes faltava imediatamente reclamavam e diziam preferir viver como escravos em volta das panelas do Egito, do que ser livres e encarar as surpresas da existência.
Se o lugar de Deus em nossas vidas se reduz a um mero protetor dos acidentes ou regulador dos eventos da natureza, acabamos por conceber um Deus que só nos interessa pelo que pode fazer em nosso favor, ou seja, um Deus age para nós, e não um Deus que age em nós e através de nós. Tal atitude pode nos transformar em pessoas individualistas e egoístas achando que Deus tem mais olhos para uns que para outros.
2. Mudanças no campo das relações sociais
Como podemos perceber os novos modos de consumo produziram tipos de relacionamentos em que interesses econômicos regiam os modos de comportamento das pessoas. A partir da expansão dos modos de produção capitalista o indivíduo, assim como aconteceu no campo religioso, passou a se preocupar consigo mesmo e com a manutenção de seus bens. A exploração da força de trabalho no período de expansão e afirmação do capitalismo, quando o trabalhador já não era dono nem das próprias ferramentas, era toda para um único fim, o bem estar econômico dos patrões. Com a revolução industrial ocorrida por volta de 1750, a exploração da força de trabalho chega a níveis desumanos, nesse contexto toda a noção de cuidado coletivo se despedaça. Ao mesmo tempo em que se afirma como indivíduo, o homem por ganância, perde a noção de dependência coletiva em igualdade.
O apóstolo Paulo escreve (Fp 2.1-4). O princípio básico de convivência são as relações de igualdade em que considero o outro superior a mim no cuidado, princípio adotado pela igreja primitiva em que o lucro de um era redistribuído em igualdade com os outros para que não tivessem falta de nada (At 2.42-47; 4.32-37; 2Co 8-9).
3. Mudanças no campo dos conceitos de verdade
Como foi dito no tópico 1, quando o homem sentiu-se liberto dos medos e mitos em relação a Deus que o assombravam, questionou também os padrões de verdade em que havia sido doutrinado até então. Para o homem desse período, uma vez livre da antiga visão de mundo onde tudo se explicava teologicamente, os padrões de verdade também foram questionados, pois, se estavam vinculados a Deus, e uma vez que a nova identidade religiosa do homem europeu aos poucos estava banindo Deus para a periferia da vida, as verdades passaram a ser relativas.
Se o próprio Deus estava sendo submetido a um criterioso exame científico porque não fazer o mesmo com os conceitos de verdade que Dele emanavam? Descartes por exemplo antes de chegar a seu famoso “penso logo existo” duvidou de tudo e submeteu toda e qualquer questão ao crivo da razão. Alguns vêem aí o germe do relativismo que no final do século XIX e começo do XX tomou conta do pensamento ocidental. Embora muito antes Sócrates tenha trabalhado com os mesmo métodos de Descartes, é com o filósofo francês e seus seguidores que o relativismo ganha um caráter mais sofisticado. No século XIX chega ao clímax a discussão sobre o conceito de verdade firmado em Deus. Em uma Europa cada vez mais atéia o escritor russo Fiódor Dostoievski expressa em seu grande romance os irmãos Karamazov o que ocorria nos círculos intelectuais da época quando coloca na boca do personagem Ivan a famosa frase: “Se Deus não existe tudo é permitido”.
CONCLUSÃO
Em todo tempo Deus espera que o Reino que está dentro de nós seja manifesto, não importando o sistema de pensamento dominante, ou quão opressor seja o regime social, cultural ou religioso em vigor. Sempre temos a possibilidade de ir além, e sempre podemos protestar para que a justiça do Reino se faça na terra, assim como fez Jesus.
A modernidade possibilitou uma série de benefícios assim como muitos malefícios, é bom que saibamos um pouco desse movimento em que estamos imersos para não nos deixarmos levar pelo fluxo que desumaniza e oprime as pessoas e também que não venhamos a ser nós mesmos roubados de nossa humanidade por um sistema inimigo da vida.
[1] Obrigações servis eram um conjunto de impostos e tributos que os servos deveriam pagar a seus senhores. O servos tinham que entregar a estes parte de sua produção agrícola (a talha). Eram obrigados também a trabalhar gratuitamente nas terras do senhor (corvéia) e não podiam se deslocar do feudo sem permissão. Além disso, deveriam pagar impostos indiretos ou adicionais, como as banalidade, pelo uso do forno e do moinho, e a mão-morta, paga quando um camponês sucedia a seu pai na posse do lote arrendado.
Betesda do Uirá, e-mail: betesdauira@gmail.com
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